morte

O FIM QUE EU QUERO PRA MIM! [MINUTOS ANTES DE PARTIR]

22:25 Equipe Das Letras 1 Comments


Quem me conhece sabe que nunca fui muito ligado a existência física, nunca tive muito apego a vida, sempre fui extremamente ciente do meu papel frente a morte e o morrer, e que a única certeza que nos é dada ao longo da vida é justamente a de morrer. Não, eu não vou passar o texto falando de morte, ainda que isso não me cause nenhum desconforto, acho que deveríamos falar mais sobre esse assunto. Quero hoje falar da hipotética possibilidade de escrever o meu final, o meu próprio script, o fechar das cortinas, o último suspiro.
Seria no Brasil, sim, no meu tão amado Rio Grande do Sul, na Serra Gaúcha, ali entre Canela e São Francisco de Paula, até a divisa com Jaquirana. Um local específico, onde um pequeno riacho corta os verdes campos do lugar, que ainda conservam os muros feitos de pedras pelos escravos de outrora que deixaram em cada pedra a marca do seu suor e do seu sofrimento noutros tempos. Ali ergueria a minha casa, meu rancho, como falamos no "gaúchês”, pela janela da cozinha, a vista das grandes e imponentes araucárias, carregadas de pinhas, algumas já caídas no chão possibilitando fartura de pinhão a mim e aos passarinhos que cantam verdadeiros hinos de alegria no pomar.
 Na sala que forma um único ambiente com a cozinha uma grande lareira, com muita lenha, nó de pinho, e bem a frente um confortável e imenso sofá, coberto com pelegos de ovelha branquinhos, uma mesa de centro cheia de livros e jornais, no canto um piano de cauda, e pelas paredes apenas estantes forrando cada centímetro coberto por centenas e centenas de livros de todos os tipos. No chão de madeira da sala, ainda haveriam tapetes, grossos, felpudos, tapetes vermelhos e verdes, contrastando, ainda que brega, mas seria a cor que eu gosto. Nada de seguir tendência alguma. Na cozinha um fogão de lenha, chaleiras e panelas de ferro, pretas, chaleira de água quente sempre fervendo, noutra panela uma sopa, de legumes e frango sempre aquecida, no forno um pão e uma cuca, receitas de minha avó que me foram passadas pela mãe, assando para o café, feito na chaleira mesmo, coado com uma tenaz de fogo ardente, separando o pó da bebida.
Ao fundo, Marne Barcelos da as notícias da Rádio Pampa, enquanto visto meu poncho de lã para pegar o leite da vaca recém ordenhada para encorpar o café, matar o frio e aquecer a alma. A cuia bem cevada já esta ali, bem ao lado do fogão, chega estar quente, erva boa, água bem quente (é assim que eu gosto), sento-me no sofá, cruzo as pernas, sirvo a cuia, abro minha Zero-Hora, e olhando o fogo queimar dentro da lareira escuto o som do vento minuano soprando forte lá fora, derretendo a geada da noite fria que cobriu de branco os verdes campos.
Por um momento me levanto, abro a porta e sinto o vento gelado que quase corta o rosto, faz escorrer o nariz, mas eu me sinto vivo, eu sinto a vida, eu caminho, vou ali mesmo, junto ao curso do rio, atiro uma pedra, escuto o som da água congelante que ainda assim insiste em correr, ouço a vaca mugindo feliz com seu terneiro no curral, as pinhas caindo das araucárias, o latido dos cachorros, o grito do quero-quero. Eu paro, olho para o céu azul, vejo tímido o sol aparecendo, quebrando o gelo da noite, quando retorno para o interior da casa.
O pão e a cuca já estão assados, retiro do forno e deixo esfriar, minha mãe faria assim, mas eu gosto de comer a cuca ainda quente, corto logo um pedaço, como ali mesmo, uma mordida na cuca, um gole do chimarrão. Sento-me novamente no sofá, olho ao redor e vejo tudo que fiz durante a vida e percebo que não existe mais tempo para o arrependimento, tudo que havia para ser feito, foi feito, as cortinas estão prestes a se encerrar. Desligo o rádio por um minuto. Coloco um pen-drive no som, com a música “Ainda existe um lugar” do querido, Vilson Paim.
A música começa, e no topo da lareira, duas fotos, em uma delas, minha mãe e a saudade que está quase acabando, logo irei ter com ela, no outro a lembrança da minha vida e do que foi minha missão, Florence Nightingale. A música segue, eu apenas agradeço a Deus por me permitir ter feito tudo que fiz, e se por alguma coisa for me desculpar, que seja apenas pelo bem que deixei de fazer. Com a cuia na mão, eu a repouso sobre a mesa de centro, onde relembro pela capa de um livro a frase de Guimarães Rosa que diz que “[...] no final, o que a vida quer da gente é coragem.”, olho pela última vez o fogo, sinto pela última vez a pureza sublime do ar, e num último suspiro dou adeus a tudo, fechando os olhos e tomando já fora do corpo físico as mãos de minha mãe.
Seria assim, e seria perfeito. Seria muito mais do que eu ainda possa fazer por vir a merecer. Mas isso se eu pudesse escrever o meu próprio final. Deixo abaixo a música que toca o mais profundo da minha alma.

Música: https://www.letras.mus.br/wilson-paim/186667/

You Might Also Like

Um comentário:

  1. Muito Lindo seu texto. Seria muito bom se pudéssemos escolher como queremos partir... Música realmente tocante..

    ResponderExcluir