morte
O FIM QUE EU QUERO PRA MIM! [MINUTOS ANTES DE PARTIR]
Quem
me conhece sabe que nunca fui muito ligado a existência física, nunca tive
muito apego a vida, sempre fui extremamente ciente do meu papel frente a morte
e o morrer, e que a única certeza que nos é dada ao longo da vida é justamente
a de morrer. Não, eu não vou passar o texto falando de morte, ainda que isso
não me cause nenhum desconforto, acho que deveríamos falar mais sobre esse
assunto. Quero hoje falar da hipotética possibilidade de escrever o meu final,
o meu próprio script, o fechar das cortinas, o último suspiro.
Seria
no Brasil, sim, no meu tão amado Rio Grande do Sul, na Serra Gaúcha, ali entre
Canela e São Francisco de Paula, até a divisa com Jaquirana. Um local
específico, onde um pequeno riacho corta os verdes campos do lugar, que ainda
conservam os muros feitos de pedras pelos escravos de outrora que deixaram em
cada pedra a marca do seu suor e do seu sofrimento noutros tempos. Ali ergueria
a minha casa, meu rancho, como falamos no "gaúchês”, pela janela da cozinha,
a vista das grandes e imponentes araucárias, carregadas de pinhas, algumas já
caídas no chão possibilitando fartura de pinhão a mim e aos passarinhos que
cantam verdadeiros hinos de alegria no pomar.
Na sala que forma um único ambiente com a
cozinha uma grande lareira, com muita lenha, nó de pinho, e bem a frente um
confortável e imenso sofá, coberto com pelegos de ovelha branquinhos, uma mesa
de centro cheia de livros e jornais, no canto um piano de cauda, e pelas
paredes apenas estantes forrando cada centímetro coberto por centenas e
centenas de livros de todos os tipos. No chão de madeira da sala, ainda
haveriam tapetes, grossos, felpudos, tapetes vermelhos e verdes, contrastando,
ainda que brega, mas seria a cor que eu gosto. Nada de seguir tendência alguma.
Na cozinha um fogão de lenha, chaleiras e panelas de ferro, pretas, chaleira de
água quente sempre fervendo, noutra panela uma sopa, de legumes e frango sempre
aquecida, no forno um pão e uma cuca, receitas de minha avó que me foram
passadas pela mãe, assando para o café, feito na chaleira mesmo, coado com uma
tenaz de fogo ardente, separando o pó da bebida.
Ao
fundo, Marne Barcelos da as notícias da Rádio Pampa, enquanto visto meu poncho
de lã para pegar o leite da vaca recém ordenhada para encorpar o café, matar o
frio e aquecer a alma. A cuia bem cevada já esta ali, bem ao lado do fogão,
chega estar quente, erva boa, água bem quente (é assim que eu gosto), sento-me
no sofá, cruzo as pernas, sirvo a cuia, abro minha Zero-Hora, e olhando o fogo
queimar dentro da lareira escuto o som do vento minuano soprando forte lá fora,
derretendo a geada da noite fria que cobriu de branco os verdes campos.
Por
um momento me levanto, abro a porta e sinto o vento gelado que quase corta o
rosto, faz escorrer o nariz, mas eu me sinto vivo, eu sinto a vida, eu caminho,
vou ali mesmo, junto ao curso do rio, atiro uma pedra, escuto o som da água
congelante que ainda assim insiste em correr, ouço a vaca mugindo feliz com seu
terneiro no curral, as pinhas caindo das araucárias, o latido dos cachorros, o
grito do quero-quero. Eu paro, olho para o céu azul, vejo tímido o sol
aparecendo, quebrando o gelo da noite, quando retorno para o interior da casa.
O
pão e a cuca já estão assados, retiro do forno e deixo esfriar, minha mãe faria
assim, mas eu gosto de comer a cuca ainda quente, corto logo um pedaço, como
ali mesmo, uma mordida na cuca, um gole do chimarrão. Sento-me novamente no
sofá, olho ao redor e vejo tudo que fiz durante a vida e percebo que não existe
mais tempo para o arrependimento, tudo que havia para ser feito, foi feito, as
cortinas estão prestes a se encerrar. Desligo o rádio por um minuto. Coloco um
pen-drive no som, com a música “Ainda existe um lugar” do querido, Vilson Paim.
A
música começa, e no topo da lareira, duas fotos, em uma delas, minha mãe e a
saudade que está quase acabando, logo irei ter com ela, no outro a lembrança da
minha vida e do que foi minha missão, Florence Nightingale. A música segue, eu
apenas agradeço a Deus por me permitir ter feito tudo que fiz, e se por alguma
coisa for me desculpar, que seja apenas pelo bem que deixei de fazer. Com a
cuia na mão, eu a repouso sobre a mesa de centro, onde relembro pela capa de um
livro a frase de Guimarães Rosa que diz que “[...] no final, o que a vida quer
da gente é coragem.”, olho pela última vez o fogo, sinto pela última vez a
pureza sublime do ar, e num último suspiro dou adeus a tudo, fechando os olhos
e tomando já fora do corpo físico as mãos de minha mãe.
Seria
assim, e seria perfeito. Seria muito mais do que eu ainda possa fazer por vir a
merecer. Mas isso se eu pudesse escrever o meu próprio final. Deixo abaixo a música
que toca o mais profundo da minha alma.
Música: https://www.letras.mus.br/wilson-paim/186667/
Muito Lindo seu texto. Seria muito bom se pudéssemos escolher como queremos partir... Música realmente tocante..
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